Crônica da Semana - COMO CONVÉM A UM CAVALHEIRO


O meu tio Hildo, irmão do meu pai, era um desses cearenses típicos do interior, com a sua simplicidade no conversar, o seu senso de humor espontâneo e aquela verve que costuma caracterizar os nordestinos, de uma forma geral. Mas, longe de ser uma pessoa simplória, possuía uma inteligência aguda e uma competência profissional inegável, havendo desempenhado, ao longo de sua carreira na área do Ministério da Fazenda, alguns cargos da maior projeção, até a sua justa e merecida aposentadoria.
            Mas a caminhada dele pelas atividades fazendárias começou quando, ainda recém-formado em Agronomia e aprovado num concurso, acabou virando coletor de impostos, pelo interior do Ceará.  E isto o fazia viajar muito pelas estradas poeirentas de então, hospedando-se, de rotina, nas "pensões familiares”, das cidadezinhas que visitava, para o cumprimento do seu ofício.
            E de tanto viajar, acabou ficando conhecido como um hóspede bem-vindo em todas elas, sem contar o fato de que, naquele interior e naqueles tempos, um coletor de impostos tinha lá a sua importância e o seu galardão. Sendo assim, onde quer que pousasse, era “doutor Hildo” prá lá,  “doutor Hildo prá cá” e “avia essa galinha à cabidela, que o doutor Hildo já chegou para almoçar”...
             Foi por isto que, certa vez, chegando cansado e já meio tarde, para os hábitos do interior, a uma dessas pensões nas quais costumava hospedar-se, foi recebido, com um ar de decepção, pela dona da hospedaria, que lhe disse, contrafeita:
            — Ah, doutor Hildo, eu estou morta de pena, mas hoje, todos os quartos estão ocupados...
            O meu tio explicou que não tinha como prosseguir viagem àquela hora, além de estar exausto, pela jornada do dia, que tinha sido extenso. E pediu à mulher que lhe arranjasse uma rede e a armasse em qualquer lugar da casa, porque o que ele mais precisava era se deitar.
            Foi quando a dona da pensão lhe disse, com alguma hesitação:
            — Olhe, o que eu posso fazer é lhe preparar uma rede limpinha num canto lá da sala, para o senhor dormir... Se não se importar, porque já tem outra pessoa dormindo lá. Mas, se quiser, eu ponho a sua rede do outro lado e o senhor pode dormir na sala, então...
            Ele aceitou, é claro! E depois de tomar um banho rápido, acompanhou a mulher até a sala, local onde eram servidas as refeições do estabelecimento, durante o dia. Mas, ao passar pela rede do outro hóspede, percebeu que não se tratava bem de “um” hóspede... Pelas frestas da barra da rede, que, por lá chamam de “varanda”, notou que ali se encontrava, observando a cena, uma caboclinha, pouco “entrada em anos” — expressão que, neste caso, está empregada em sentido restrito — atenta ao movimento da sua chegada.
            A dona da pensão disse um “boa noite” e se foi. Ele se deitou, mas percebeu que a cunhã (como se diz por lá) continuava, de onde estava deitada, exercendo o seu direito de ser curiosa. Olhava de lá, mas quando ele, intrigado com aquilo, olhava de volta, ela se escondia nos panos da rede. Olhava de novo, mas surpreendida na sua abelhudice, tornava a se esconder...
             Assim é que, depois de vários lances desse jogo de “pique esconde” sertanejo, surpreendida num momento em que ele resolveu esperar que olhasse para o lado da rede dele de novo, ela finalmente falou:
            — Moço, se o senhor quiser “faltar com o respeito”, falte logo. Porque eu preciso dormir!
            Sobre o que aconteceu daí em diante, eu não sei. Porque foi ele quem contou isto aos irmãos, mas somente até este ponto. Como convém a um cavalheiro...




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