PRÁ QUEM SÓ TEM O CACHORRO
Wagner Fontenelle Pessôa
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Foi pelo final da década de 1960, numa época em que a televisão para os brasileiros ainda era apenas em preto e branco e as propagandas que ela veiculava não possuíam nenhum grau de sofisticação, assim como temos agora, que apareceu no horário nobre o comercial de um uísque importado, embora engarrafado no Brasil, que esbanjava apuro e charme na sua produção e realização. Bem entendido, a publicidade; porque a bebida não era lá essas coisas.
Numa época em que a rapaziada — para estar no ponto certo, antes do começo da festa — só conseguia consumir “Cuba Libre”, “Samba em Berlim” e outras misturas do gênero, feitas com rum ou cachaça, quando não a própria cachaça, o uísque era para um número bem restrito de consumidores por aqui. E o importado, então, só mesmo para os mais “abonados”!
Para a minha geração, só havia duas possibilidades de um jovem dar uma bicada num “scotch” legítimo: sendo filho de um pai rico ou tendo uma namorada que fosse filha de um pai rico. O que não era o caso da maioria, como é fácil deduzir. E foi por isso mesmo que, certo dia, um dos nossos colegas chegou à “república” em que morávamos com um litro debaixo do braço e, no seu modo característico de ser tosco, porém engraçado, declarou para a turma, exibindo o rótulo:
— Hoje vão cair os nossos dentes! Olha aqui o “escocês” que nós vamos beber mais tarde!
Isso foi no dia do aniversário dele, que namorava a filha de um senador e recebera aquela garrafa da garota, por certo, surrupiada da adega do pai. Naquela noite a farra foi grande e nós ficamos torcendo para que chegasse logo o Natal e a moça tivesse a mesma feliz ideia ao presenteá-lo!
Mas como eu ia contando, ainda nos tempos de um marketing menos elaborado para a TV — muitas vezes realizado ao vivo, com as chamadas “garotas-propaganda” — apareceu essa publicidade do uísque importado, certamente produzido por alguma agência estrangeira, embora a locução fosse feita em Português.
A tal propaganda era emoldurada por uma aura de classe e beleza, sendo estrelada por ninguém menos do que o charmosíssimo ator britânico, David Niven. A cena começava com uma tomada aérea, que acompanhava um reluzente Rolls Royce até a entrada de uma mansão maravilhosa, plantada em meio a um gramado imenso e cercada por um portentoso gradil.
O carro passava pelo amplo portão, estacionava sobre aquele lindo gramado e o ator caminhava até uma das mesas, no deck da piscina. Enquanto isso, em câmera lenta e saindo da mansão, surgia uma loura exuberante, que caminhava ao seu encontro, com os cabelos esvoaçando ao vento e precedida de um belíssimo cão dálmata, que corria em direção ao dono. Ela lhe dava um beijo (no marido, não no cachorro, claro!) e lhe servia uma generosa dose do uísque, que já estava estrategicamente posto sobre a mesa, enquanto a câmera fechava o foco no rótulo da garrafa.
Do começo ao fim do “merchandising”, ouvia-se uma música, mais do que apropriada ao estilo e beleza do visual, enquanto um locutor, aveludando a voz, dizia um texto em “off”, num perfeito sincronismo com a sequência das imagens:
— Se você tem um belo carro... Se você tem uma linda casa... Se você tem uma maravilhosa mulher... E se você tem um belo cachorro... Então, você só pode beber “Passaport”!
Convenhamos que o texto era meio machista, mas não estava em desacordo com os valores daquele tempo. Porque essas coisas pretendiam apontar para a imagem de um homem rico e bem sucedido na vida.
Logo em seguida, na televisão em Fortaleza — que, naquela época só possuía uma ou duas emissoras locais de TV — apareceu o anúncio de uma cachaça, que era muito mais simples e direto, embora visivelmente inspirado na publicidade do uísque.
Na porta de um casebre e no meio de uma roça muito mal cuidada aparecia um caboclo pessimamente trajado, tendo uma garrafa numa das mãos, enquanto ao seu lado um cachorro se coçava. Ao fundo e muito distante, ouvia-se o som de uma sanfona lamentosa e mal tocada, enquanto a câmera ia fechando um close lentamente, até o ponto em que só apareciam na tela o animal e a garrafa segura pelo homem, deixando ver o rótulo.
Era aí que entrava a voz de um locutor, tentando imitar a entonação do outro na publicidade do “Passaport”, mas que dizia apenas o seguinte:
— Caninha São José... Prá quem só tem o cachorro!
A tal cachaça não valia nada: era álcool puro! É preciso concordar, porém, que a “sacada” da agência que produziu o comercial foi, simplesmente, genial!
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